segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Utra Realismo


Não me reconheço no meu trabalho, nos meus pensamentos - sempre repetitivos e obsessivos, desses que fazem um sujeito cometer besteiras desarrazoadamente. 

Hoje, no decorrer do expediente, encontrei duas meninas conhecidas. Eu usava terno e gravata dourada, excercendo a simplória, humilde função de “recepcionista” do museu. Elas estavam lindas, e pareciam mais maduras, sagazes, prontas para o novo mundo real.

Uma delas, antiga paixão platônica, morena alva e delicada, me perguntou se eu era o Davi, amigo do Vitor, se eu me lembrava dela. Eu retirei o tampão de ouvido; claro que me lembrava, mas estava tentando fingir que não. Respondi que sim, era eu – ainda que quisesse não ser, ainda que preferisse não estar ali, fingindo que trabalhava, sentado numa cadeira sem excercer verdadeiramente função alguma. Corei no ato, pois não achava que seria notado, no máximo pensava que seria ignorado. Ela riu, como se dissesse “Sim, é o mesmo Davi, o mesmo Davi de sempre”, e partiu para a próxima sala sem nada mais dizer. Eu não senti nada.

A outra, de pele cor de jambo, de misteriosos olhos puxados e jeito de cigana, ia bem nas aulas de Latim, a faculdade de Letras(que eu largara) começava a ficar interessante para ela. Me perguntou o que eu fazia, e eu disse que trabalhava naquele museu apenas, com aquela gravata, e ela riu, e eu ri também, nós dois sabendo que aquilo se tratava apenas de uma piada, uma piada real demais. Tudo real demais para ser verdade. Ela disse "bom te ver"; bom ver a mim, o recepcionista.

E elas eram pessoas como as outras, indo e vindo naquele museu, admirando obras de arte de caráter ultra realista, porém rasas para o meu gosto. Todos se admiram da perfeição daqueles bonecos, e eu me admiro da espontaneidade dos visitantes, de como eles se interagem facilmente, da facilidade com que eles se envolvem com as obras, e por vezes chegam a tocá-las, com ingenuidade angelical.

Me mantenho em meu posto e observo, da posição privilegiada e semi invisível do funcionário, de terno e gravata, parado, quase me juntando às paredes, às portas, ao reino mineral. Amanhã recebo meu salário.