segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Museu

1.

Não poderia ser artista dessa forma.
Se algum dia eu me tornasse artista, teria que arrumar uma desculpa qualquer pra esse tempo em que fiquei sem fazer nada, olhando pro teto. Teria que tomar todo esse tempo por uma grande crise depressiva. Quem sabe diria que se trata de  uma fase de gestação do artista.

Tenho que justificar esse tempo que fico fazendo nada. Ou serei justificado pelo tempo.

Por que querer ser artista? Por que se fantasiar de artista?
Quase todos vão e voltam pra casa todos os dias, e depois do trabalho só pensam em dormir.

Eles voltam pra casa, passando por vielas sujas, e vão dormir sem fazer sexo. Deixam o computador ligado.

Que tempo tenho para ser artista? Tenho que ocupar o tempo e ser ocupado por ele. Tenho que franzir as sombrancelhas e calcular quanto tempo ainda tenho até lá na frente, quando alguém vai me dizer, "como é que você achava que ia ter segurança na vida sendo artista? faz um concurso."

prevendo esse tipo de coisa, tenho me preocupado desde já.

Não me sinto bem fazendo qualquer coisa. E franzir as sombrancelhas não me torna mais útil à sociedade.
Os artistas estão no olho do capitalismo. Eles são os primeiros a entregarem o ouro por uma participação em um evento qualquer. E a se vestirem como se estivessem na França do meio do século XX. 

2.


Eles não usam drogas, mas são mais loucos que os junkies de Nova York em 1970. São mais obstinados que usuários de crack em abstinência. Suas mentes se estreitaram pela quantidade de informações que possuem sobre o mundo, que vão de papéis de parede novos, bolsinhas artesanais baseadas em cerâmicas Maxacali, tatuagens gratuitas mal ajambradas, apartamentos apertados no Centro, a salinha do café no museu em que trabalham. Os monitores são como estátuas que andam, lêem e conversam sobre tudo com a serenidade de Buda. A noção cultural desses entes é enorme; foram treinados para terem um domínio relativo sobre uma vasta gama de temas, tais quais o Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meirelles e cia. Os visitantes do museu absorvem alegremente a quantidade de informação que lhes é despejada na bandeja aos domingos. Quando chegam em casa e colocam os pijamas para dormir, sonham com as letras dos nomes embaralhadas numa linha do tempo que se estende por um céu azul resplandecente. No dia seguinte, não se lembram mais de nada que os monitores lhes disseram. 
Os monitores acordam felizes; o museu não abre às segundas.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

W. Brawer

Há várias especulações sobre a verdadeira natureza de W. Brawer. Uns companheiros da taverna me disseram que Brawer foi um anjo que, expulso do paraíso, caiu violentamente no chão, num grande estrondo. O baque fez com que ele se lembrasse apenas vagamente de seus períodos de glória. Após a queda, Brawer se tornou um demônio a vagar pelos bares de nossa Província, importunando a todos com sua banda e dizendo repetidamente que ele já havia vencido na vida, e que faria todo o esforço possível em ordem de continuar vencendo a Deus e a todos. Dizem inclusive as más línguas que de madrugada W. Brawer se transforma em um corvo enorme, e sai voando por toda Minas Gerais, parando nos bares, fazendo contatos importantes e divulgando os cds e camisas da sua banda.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Velar(canção)

Um adeus
um abraço seu
Até mais, vá em paz
Suas mãos fazem sinais
que eu não posso entender

Cuide bem de si
cuide bem do que sobrar de si

que eu fico bem
sem você, sem ninguém
eu perdi
você também
e não terei mais a quem velar

Cuide bem de si
Cuide bem do que sobrar de si
Cuide bem de nós
Cuide bem do que sobrar de nós



segunda-feira, 15 de junho de 2015

O Hospital


Jango entrou no grande hospital, e subiu de elevador até o terceiro andar. Andou um pouco a esmo, com a cabeça ainda cansada da noite anterior. Não conseguia se localizar bem nos vastos corredores brancos - ainda que frequentasse o hospital desde menino. De vez em quando, passavam apressadamente por ele lindas estagiárias vestidas em uniformes brancos. Seu desejo clamava fervorosamente por seus cuidados. Os médicos, enfermeiros e funcionários dali lhe pareciam todos mais saudáveis psicologicamente do que ele, isolados que estavam naquele templo de cura, ausentes do espetáculo social.

Herói; era essa a palavra que Jango lia no rosto de cada um deles. “O sentido da existência, para esses inabaláveis curandeiros, é a conservação da existência alheia. Os instintos egoístas, que afligem a maioria das pessoas diariamente, não deve abalar o senso de dever dos médicos e seus assistentes”, pensava com seus botões enquanto não encontrava o departamento cirúrgico. “Os meus regimes de auto-destruição, perversão e sadismo não assustam a esse exército de heróis convictos, determinados a combater a morte a qualquer custo.” tais eram os pensamentos que lhe ocorriam. Jango sentia uma espécie de glória melancólica pairando no silêncio dos corredores.

A serenidade do recinto parecia neutralizar sua mente, ainda nervosa e obscurecida pelos excessos da noite anterior. Chegou enfim à ala cirúrgica, onde foi encaminhado a uma enfermeira de lindos olhos azuis e sotaque nordestino. Ela entregou a ele um daqueles coletes abertos na parte de trás, igual ele sempre via nos filmes, e pediu para que se trocasse no vestiário. Ao andar pelo departamento cirúrgico com o colete verde-claro e uma touca na cabeça, Jango se sentiu pouco respeitável. Suas bolas se recolheram ao toque do ar frio de inverno. Desistiu de manter alguma compostura e se deitou de costas na cama de operações, para que o médico pudesse cortar a pinta volumosa em sua nuca.