segunda-feira, 30 de junho de 2014

Aspiradores de Pó

No caminho, passaram pela antiga Escola de Artes e Letras. Alberto, que já estudara lá, olhava pela janela como se sonhasse. Sem que ninguém o perguntasse, começou a falar desbaratadamente.

- Eu esmurrava a ponta da faca com todas as forças. Eu pintava com culhões. Eu fotografava como um macaco.  Percorri esse deserto informacional que a arte tenta em vão abarcar. Confiei meu coração à areia quente. Eu dizia algo: tudo voltava para mim em uma linguagem leve, abstrata e técnica. Talvez a linguagem do pó.

- Os que aspiram a uma carreira artística aprendem a usar a linguagem de forma diluída. No texto e na fala, suas palavras parecem imergir de um repouso. Não têm nem voz. Fazem poesia feito ready made. Não curam ninguém. Não dão prazer. Não atraem crianças. Não atraem mulheres. Não atraem moscas; sequer fazem parte do mundo, abolidos do fluxo magnético terrestre. Logo, pertencem ao mundo da higiene. São protegidos e alimentados pelos comensais da higiene. Se ganham dinheiro vão para orgias, mas só transam se tiverem vontade, o que raramente acontece.

Um silêncio enfastiante preenchia cada canto do carro.

- Não sei quanto a vocês, mas eu já não compareço à exposições. Verdade seja dita, obras de arte não me interessam mais do que o mundo. A arte pra mim não está acima, mas adere à superfície das coisas. A arte é onde estou. O problema dos artistas é que eles estão sempre , nunca saem de ; se eles não estivessem lá, as pessoas iriam de bom grado visitar galerias de arte.

Frágil

Me sinto minúsculo frente às crianças. Posso brincar com elas por um longo período de tempo, mas me envolvo tanto que saio chorando. Bato a porta do quarto e escrevo.

-

Era verão. Estávamos na casa de praia da vovó. Um quiosque de palha, ao lado da piscina, ocupava uma pequena porção do quintal da casa. Passávamos nossas tardes por ali, 8 primos, uma prima, mais outros meninos e meninas da vizinhança. Todos mais ou menos na puberdade. Eu encarava esse processo como a maioria das crianças: era estúpido, perverso e teimoso.

 Nesse dia havia entre nós um menino esquisito; o filho da empregada. Ele devia ser talvez um ano mais novo que eu. Era magro. Achava-o simplesmente sem graça. Tudo nele era-me indiferente, e eu tinha mais o que fazer para ficar analisando os outros. Mas o filho da empregada, em pouco tempo, já tinha ganho entre os meus primos uma reputação das piores: burro, feio, e principalmente fraco. Seu nome era Valdecir.

O Valdecir ganhou fama de fraco por causa da queda de braço. Estavam brincando disso e ele perdia de todo mundo. Eu não gostava de participar da brincadeira, mas assistia com prazer aos outros competirem. Valdecir perdia todas. Me agradava ver meus primos vencerem-no e uma saraivada de chacotas recair sobre Valdecir. Me sentia sinceramente embriagado e comovido com aquilo. "Então", pensava com meus botões, "Valdecir é magro, burro, feio e fraco".

Eu peguei Valdecir pela mão e levei-o até a sala de televisão, onde minha mãe e minhas tias assistiam à novela apertadas no sofá. Exibi-o como uma criatura exótica, trazida do quintal. Anunciei o desafio: "Vejam, como venço facilmente na queda-de-braços Valdecir!" Nos ajoelhamos os dois no chão da sala e unimos nossas mãos. Valdecir estava determinado.

As risadas irromperam na sala, risadas cruéis de mulheres na faixa dos 40 anos -  como risadas de criança, porém mais perversas. Valdecir também riu, triunfante. As tias parabenizaram-no, comemoraram a vitória do filho da empregada, e depois, repentinamente, como se nossa disputa se tratasse de um mero intervalo comercial, voltaram as atenções à novela. Eu fora zombado por uma corja de mulheres de meia idade.

Saí correndo da sala de televisão e fui me encolher entre dois sofás na sala de estar, no canto da parede, como se eu quisesse me tornar um abajur, uma cabeceira ou algo parecido. Ali, eu senti o golpe, toda a humilhação em dobro. Nada, absolutamente nada em mim era digno de louvor. Não havia como encontrar razão honrosa para meu ato. E eu me tomava a sério demais para não me sentir amargamente desolado.

sábado, 28 de junho de 2014

amor(2)


Os amores estão ficando gastos. Até eu, que me proclamava guardião de todos eles, esqueci o que sentir.

Se ao menos eu recebesse algum sinal do tipo "eu te amei, mas você não sabia". Aonde estão aquelas meninas que me mandavam cartas na infância? Eu queria saber de tudo o que perdi. Parece que foi muita coisa. Eu queria ouvir isso da boca das infelizes que um dia me amaram. Mas ninguém está disposto a me contar uma história. Criemo-la, ora pois.

O que eu sei, de verdade, sem criação(mesmo), é que quando eu estava na terceira série da escola, havia um dia especial em que os meninos e meninas participavam do Correio Secreto. Nós deveríamos escrever cartas amorosas - supostamente anônimas - e mandar para alguém do sexo oposto. Eu queria Maria Alice com toda minha alma. Eu escrevi uma carta para Maria Alice. Não me lembro do que havia escrito, mas foi algo genial.

Em troca recebi uma carta de Maria Carolina. Um rolo de papel no qual estava escrito '600 eu te amo'. Maria Carolina não era lá essas coisas.
Eu não contei, mas pelo rolo ser do tamanho de um pão de sal, presumi que eram mais de 600 eu te amo. Tudo escrito com força numa letra cursiva grande. Que azar o meu. Saí da sala de aula em prantos.

Em casa, ainda pensava naquilo durante a tarde. Eu tinha 11 anos, e me via diante de um dilema comum da vida adulta. O telefone de minha casa tocou. Era Maria Carolina. Essas pessoas sempre descobrem nossos telefones, mais cedo ou mais tarde.

-Alô?
-Alô, Davi? Você gostou da carta que eu te enviei?
-...Sim.
Ouvi uma risada maníaca, misteriosa, e depois telefone ficou mudo.

Era isso. Eu tinha oficialmente selado o meu destino; Maria Carolina me amava, e eu dera esperanças para sua obsessão. Eu estava consternado. O que Maria Alice iria pensar? Essa  é a pergunta que ficou sem resposta. Nunca soube o que Maria Alice realmente queria, e ainda não sei o que meus outros amores(que são como subprodutos de Maria Alice) querem. Elas nunca me mandam cartas, rolos de papel, declarações extravagantes. Apenas aparecem; flores no asfalto esperando para serem violentamente esmagadas. Elas são como Mister Magoo, cegas e ingênuas, e eu como um palhaço do destino. Um fantasma, um bom ou mau agouro. Eu sou como um presságio.

Se eu pudesse voltar ao tempo, eis o que faria: pegaria nas mãos de Maria Carolina. A levaria para passear no recreio e, sem ter medo das chacotas, faríamos um pic-nic no meio do gramado. Faria tudo o que ela me pedisse. Nesse ponto, Maria Alice estaria a meus pés. Mas eu não daria atenção a ela. Não daria atenção a ninguém. Apenas me concentraria em obedecer as ordens de Maria Carolina.
Porque é preciso render-se ao amor de outrém. Derrotado, comemora-se a vitória do outro.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Cão

É um dia azul e frio. Olho distraidamente o cão atravessar a rua para a praça. O animal parece estar numa espécie de encantamento; ele é alegre com toda a alma. Que seja irracional, isso é coisa que não importa aos passantes, que o tratam como um saudoso amigo a quem não se via há muito tempo.
O cão se afirma. Basta a ele saber que existem praças, bosques, jardins, portas, janelas e postes. Basta estar sonhando para viver. Passa-se o sonho, e já é a vida diferente do que era antes, um outro sonho talvez. Eu observo o cão, correndo em direção à lata de refrigerante jogada por uma criança. É outro tempo no qual ele vive. Seu focinho trabalha freneticamente para captar o que quer que seja. Não muito longe, ele reconhece pelo faro as fezes de uma cadela no cio; o cão entra em êxtase. Os passantes, mulheres e homens, param e coçam sua barriga, acariciam seu pelo, beijam-lhe o focinho úmido. O cão é o homem que ficou no Éden.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Nós estávamos dentro do cinema, numa cama para dois. Um filme era projetado na tela, mas não me lembro do que se tratava. Peguei ela pela cintura, e começamos a nos beijar ali naquela cama/poltrona. Ela então se colocou de pé sobre a cama para tentar tirar sua calcinha, tropeçando nos próprios pés. A nossa relação era baseada em acordos tácitos; ela tinha liberdade para se soltar(eu a aceitava mais do que os outros), e eu não tinha obrigação de dar satisfação a ninguém sobre meu "amor". Um homem atrás de nós soltou um resmungo. Tudo aquilo se tornava extremamente desconfortável para mim. Ela se atrapalhava com as suas roupas, eu fitava sua barriga branca infantil. Eu só queria que ela parasse com aquele transe histérico - que já estava atraindo a atenção dos demais -, que se deitasse em meus braços e me beijasse por um longo período de tempo. Então, de uma hora para outra ela saiu andando rapidamente, descendo pela sala até sair do cinema.
Eu não ousei sair de onde estava: esperei até o filme acabar. Tinha um mau pressentimento. O filme acabou, eu saí da sala e fui dar num estacionamento labiríntico e deserto. Comecei a correr, a descer os andares do que mais parecia ser cenário de filme policial. Um menino de uns 13 anos, branco, cabelo loiro raspado, saiu de um esconderijo (pelas vozes que ouvi haviam outros meninos ali), e deu de cara comigo. Olhei pra ele assustado, e ele me estendeu um baseado mal bolado, "quer?". Dei uma boa tragada e continuei descendo. Encontrei um Mcdonalds fechado. Pensei, "deve ser por causa das manifestações" e continuei perambulando, procurando por gente, procurando aonde estava o movimento. Mas a ela eu tinha certeza que havia perdido.

terça-feira, 17 de junho de 2014

amor

a mão dela encobre um sorriso estranho, pois poderia bem se tratar de um suspiro, prenúncio de bocejo ou mesmo pranto. os olhos estão fechados e parecem conter algo, assim como o sorriso. o sorriso me preocupa.

minha obsessão é por um tempo que se recusa a passar. hoje tento acolher aquilo que amei, ainda que o desprezasse anteriormente; mas, quanto a Ermina, não há nada que se fazer; ela vive dentro de mim como uma embalagem esquecida num deserto. procurá-la seria tarefa tão penosa quanto inútil. mas ela continua ali, bailando no vazio imenso de uma época - logo ali onde perdi a razão.

recomeço tudo de novo; as mãos, trêmulas, não escondem nada, e o sorriso é mais um esgar - pode indicar timidez, mesquinhez... mas não quero ficar especulando coisa alguma baseado apenas em meu preconceito sobre essa foto, bem razoável aliás. O rosto pálido e angelical me preocupa, tal como a uma mãe. Sinto uma compaixão incômoda por essa moça; pode ser que ela seja mais frágil do que eu imaginava. Pode ser que o esforço dela para manter a compostura seja tanto maior quanto mais gelado for seu coração. Tudo isso pode ser que seja. E aí começa o delírio, o fanatismo, a mitologia, a religião e também o amor; essa palavra azul calcinha que falha foneticamente em expressar um significado aberto e puro. Odeio também a imagem do coração, aqueles dois semicírculos curvados um sobre o outro. Odeio que me digam por qual órgão devo sentir amor.

Sinto por mim grande desprezo.
Eu, supostamente tão engraçado e simplório, sem poder desviar-me da sombra de Ermina, caí honesta e terrivelmente, perdendo as calças da hombridade, perante a sociedade imaginária que vive em meu cérebro. Surtos acontecem e são como os gases estelares que explodem no universo de vez em quando; não há nada de errado com isso.

Como auto defesa instintiva, opto hoje por crer no ridículo(e mais provável); pouca diferença faz a minha existência para essa criatura. Se eu quisesse fazer disso um romance eu seria um personagem, o Lunático. Eu não poderia jamais ser o narrador onisciente dessa história - apesar de ser autor dessa espécie de crônica imbecil que escrevo agora.

O narrador da história que não existe - mas eu gostaria de ter escrito - deveria percorrer o íntimo dos meus pensamentos, contar o mundo através de minha ótica alucinatória. relataria cada coincidência, cada progressão da minha patologia. o universo intrincado da minha ilusão se tornaria preciso a ponto de convencer aos leitores. Então, que maravilhoso seria, todos sentiriam compaixão por mim, esse palhaço imbecil.

Mas, o escritor construiria esse universo apenas para destruí-lo depois, e demonstrar a supremacia do tempo sobre a mente humana; sobre como as pessoas se enganam para viver poeticamente, e com isso acreditam superar o tempo. Sobre como a literatura é besta quando virada para o próprio umbigo. Sobre como tudo o que eu escrevo é assim, e alguma tirada cretina do tipo "porque você está lendo isso?"

O narrador não poderia jamais saber o que se passava na cabeça de Ermina, se é que alguma coisa se passava. Ninguém saberia dizer. Eu coloquei-a num imenso pedestal; às vezes olho lá pra cima sem saber se ela ainda está lá, se morreu, ou se precisa de comida. Mas eu já me conformei com a qualidade de idéia que ela tomou. Me seria mais útil assim do que viva. Não um sacrifício; uma idéia, através da qual posso me guiar. E se dizem que a linguagem é um sistema tão complexo, sou eu esse decifrador. Sou um imbecil como qualquer outro, percorrendo minha parte do labirinto.

Alguns amantes podem vir a se encontrar no labirinto; então, a glória que é percorrer todo esse nonsense de mãos dadas. Mas nem todos dão essa sorte. Mas eu prefiro pensar que nem todos têm essa força, e eu não digo força, como força moral. A força espiritual prevalece sobre a força moral. É claro que faço apenas uma idéia do que estou falando. Mas é apenas sobre isso que a linguagem me permite dizer: idéias, fogo-fátuo, ilusões imbecis que apodrecerão na mente de meninas imbecis, como eu, imbecilizado por toda essa idéia de amor.

Foda-se!

isso foi

hoje tomei um copo de suco, um café, fumei um cigarro e uma ponta. o resto da manhã passei imerso em devaneios, escutando músicas feitas por seres humanos geniais. pensei em tudo o que as músicas me sugeriram que pensasse, inclusive em você. meus hábitos não são dos melhores, e minha saúde sofre as consequências. me sinto terrivelmente bem. agora eu como uma torta de morango que alguém deixou na geladeira. estava com saudade disso - de ultrapassar os limiares, de enfadar-me até o ponto de me sentir próximo de mim mesmo. a rotina é tão excruciante, são tantas as pressões de convivência que acabo perdendo, por um tempo, minha capacidade de discernir livremente. sinto apenas um impulso irracional, como um bebê em meu ventre chutando e esperneando. passo então a fumar cigarros - quero matá-lo - beber, me dopar. não suporto sua existência. não suporto minha consciência, não suporto que ela seja anterior à realidade, que esteja entre mim e o que quero ver, tocar. que esteja entre mim e as meninas. mas não há outra forma. eu existo a partir de alguém, de um sujeito, de uma idéia completamente desvairada de mim mesmo. essa idéia é deixada à revelia, e ela muda, muda o tempo todo. está sujeita a qualquer tipo de difamação, é vulnerável como uma planta. sacrifico essa planta para chegar até algo palpável, a um pedaço de realidade que eu possa agarrar, perverter, mesmo que esteja passado, que não seja presente. ao menos isso foi. essa é minha recompensa.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

tempo da ilusão

de tempos em tempos vou arrumando minha cama de ilusão
ela é mais doce, serena e pura do que a realidade é
coberta por inúmeros lençois de fineza indiscernível
da vida tal como vista pelos olhos do poeta palhaço

às vezes eu me deito nela e olho para o teto
espero por nada, amo o tempo da preguiça
sabendo ser tudo passageira ilusão
que me amamentará no tempo da velhice.



domingo, 8 de junho de 2014

em uma noite de domingo tanto faz. nada faz, nem precisa fazer sentido. escrevo unicamente por preguiça de pensar em outra coisa. minha cabeça dói, meu corpo geme, meus rins trabalham incessantemente. são essas brigas, esse medo, esse álcool, todas essas toxinas se acumulam. muitas pessoas, incapazes de lidarem com questões subjetivas, atribuem os seus problemas à substâncias tóxicas. e então param de beber, ingerem legumes, suco de abacate, água de côco, fazem yoga, e se sentem melhor. mas estão sempre um pouco ausentes; o problema ainda está lá, e acena de dentro. você NÃO é o que você come. não é culpa das toxinas.

o termo "equilíbrio", não raras vezes é interpretado de forma equivocada.

há sempre algo de deliberado em toda situação. se pensamos que não, é porque transformamos nossas escolhas em hábitos. é porque, deliberadamente, somos automáticos. Assim como podemos ter hábito de ingerir substâncias tóxicas, podemos ter o hábito de acordar cedo, tomar café, ir pro trabalho. a diferença é que, da primeira forma, a morte está ali para te dizer: isso é um hábito escroto. isso não acontece com os bons hábitos. com bons hábitos, estamos sempre meio distantes de nós mesmos, nos parecemos mais com o william bonner do que com qualquer outra coisa.

os fins de semana estão ficando cada vez mais difíceis; posso dizer com segurança que meus dias de semana são, em geral, mais agradáveis.

em dias de semana tenho menos escolhas, e meu trabalho é relativamente bem agradável. dentro dele, posso aprender e ensinar. fora dele, onde todas as escolhas me são possíveis, me sinto prisioneiro: não há ninguém novo que aceite um convite para dar uma volta. qualquer coisa é interpretada como uma invasão de privacidade. é difícil demonstrar desejo e interesse por alguém na cidade. é tudo tão velado, tão inútil.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

local proibido
mensagem encaminhada a
: medo
mártir de dia
de noite medo
razão de ser 1- me embriagar,
2 - cavar para encontrar pranto
3 - cometer crime ter castigo
sem o quê nao vivo
eu nao tenho;
eu quero
eu posso,
eu desisto. eu preciso dum rio
de um braço de mar
eles me dão
o que essas meninas não sabem
dar
preciso de um cavalo
e de um pouco de fumo
só.