terça-feira, 25 de março de 2014

uma pessoa parada no ponto
tenta parecer ciente de tudo o que lhe acontece
mas para quem passa, sentado no ônibus
a pessoa parece, assim de pronto
tão imbecil quanto qualquer um

meus primeiros dias como burocrata(2011)

Três dias de trabalho e eu já me sinto exausto por ficar sentado dentro de um escritório esperando ordens, sem qualquer perspectiva a não ser de um diálogo com alguma das mulheres do escritório. Eu não quero incomodá-las com minha vontade de sair dali, então acabo me detestando mais, gradativamente.
Finjo não estar entediado, finjo estar estupidamente interessado em alguma notícia na internet enquanto aguardo as ordens, fossilizado, minha garganta, minha voz cheia de horror por estar ali - um simples ambiente de trabalho, com pessoas solícitas e afáveis. Todas elas mulheres, prontas para me enxergarem e dedicarem a mim o mais discreto desprezo, como a uma criança senil. Qualquer movimento é perigoso. Não há chance de enganá-las. Afinal de contas é um trabalho bastante simplório - basta cumprir tarefas banais que visem a continuidade daquele aparelho burocrático.
É indefinidamente pior a qualquer abismo no qual ousei mergulhar de alma.
Entendo agora porque meu pai me dizia tanto para estudar. Talvez se tenha esquecido de dizer que eu estava desde sempre preso a um poste gigantesco e sólido.
Não importa o quão retardatário você é, o grau de sua deficiência mental, o jogo está lá para ser jogado, e por ele, outras pessoas estão se sacrificando infinitamente mais do que você. Então você se pergunta sobre o que é que todos estão falando, o que seria mais real do que esse sofrimento quente e palpitante em suas entranhas?

sábado, 15 de março de 2014

deserto nas mãos


é doloroso ver, lembrar como é que se vê, é doloroso quando passa um clarão de beleza - quem sabe a verdade - mas logo volto a ruminar longe do pasto, passado o presente.

pessoas passivas que não são, e a necessidade de ser por elas.
elas não me preenchem, elas me tiram, me puxam para o palco do circo à meia noite.

é doloroso ver um amigo enganado por sua própria retórica falaciosa
ser livre e não poder mais fazer companhia à miséria que cultivei durante anos.

a minha crueldade não tem fim, a dos meus queridos também não tem fim
penetrando corpos sem vida como se fosse amor, quem pensam que são?

quase dou razão ao amigo, que escolheu a solidão de um reflexo
deixando o mundo pra depois, construindo escombros na ordem das coisas

mas não;
levo um deserto em movimento,
sou o que busco
não me possuo nas mãos.



um texto esquecido numa página de caderno


mensalidade paga, as lágrimas de Lina e seu dedão sangrando sobre seu chinelo vagabundo, obras de arte digital, pinturas modernistas, pinturas religiosas de qualidade duvidosa, um filme tailandês que se chamava "Eternidade" - e essa era de fato sua duração - colchão d'agua, a grama da praça da liberdade. esse foi um dia longo
não sinto ligação. o que sobra, a partir de agora, a partir de qualquer momento...
ridículo.

sábado, 8 de março de 2014

eu queria escrever.

Eu queria escrever. Qualquer sujeito que está começando uma segunda faculdade em Letras estaria escrevendo como um lunático. Acontece que eu não. Eu tenho carinho pelas palavras. Não quero usá-las. Ninguém gosta de se sentir usado. Quero amá-las da forma que não me é permitido amar a todas essas meninas que andam cheias de segredos, sempre se escondendo atrás de homens de sexualidade duvidosa. Que se escondam, pois na arte eu sou o que elas mais detestam; um verdadeiro cúmplice. Mas na vida, posso fingir ser a carcaça de homem que elas tanto acham que eu sou, logo querem que eu seja. Sou raso para elas.
E quando a superfície se quebra, meu abismo engloba seu entorno de pequenos precipícios e lagos profundos. O que se ergue é uma substância amorfa, sublimada, sobre a qual coloco minha assinatura como adorno, sabendo que foram elas. Foram elas que quebraram a porra da superfície.