sábado, 29 de dezembro de 2012

o odor que o gato exala pelo seu rabo.


Agora essas criações-relações ilusórias recaem sobre mim como uma sombra de memórias vivas e incompartilháveis. Caso as esqueça, ninguém poderá me lembrar delas, e o mundo continuará sendo o mesmo. Me chamarão pelo meu nome próprio e me contratarão como capinteiro sem nunca saber do que fiz como músico, poeta ou artista, enquanto eu achava que não era nada. 

Há um odor de gato no ar. gatos exalam odores, e eu não sei aonde eles querem chegar com isso.

Me sinto sempre prestes a me tornar qualquer coisa. Como um objeto por trás de um véu, ou um mímico. 
"…o espectador aguarda com olhos implacáveis, ora cheio de tédio e desdém, ora alegre e irritadiço, ora frio e altivo, pelo desvendar do sujeito em questão".
O fantasma de um gato com ossos protuberantes.

E hoje me permito ser auto bajulador em minha escrita. É algo inevitável quando há fluxo honesto de consciência. Todo amor é, a princípio, narcísico. 
Ando me sentindo fraco frente à tudo que a vida me disse através de meu corpo. Coisas sobre pureza, alegria e poder. Mas resta muito pouco da vida que por aqui já passou - espero um dia apenas fazer um humilde mosaico com os cacos. Que essa seja minha atividade derradeira.

Já pedi licença à todos os meus fantasmas para ser poeta. E eu disse a ela "eu PRECISO de ar, aqui tá muito quente, e não vou ficar aqui sentado sendo hipócrita. eu VOU vomitar nesse sofá se não me deixar sair daqui." A velha simplesmente aceitou, balbuciando qualquer coisa sobre os dias de hoje. Como um gato com ossos protuberantes, aguardando.

Sangrei sem ser santo nem mulher. "Coitado, queria virar pó quando crescesse. acabou se tornando apenas um homem com uma curvatura duvidosa nas costas." Replicou.

"Aqui estão algumas cicatrizes", eu disse, mostrando os tendões costurados e um pedaço de dedo que também costuraram de volta.

...mas ainda hei de sangrar mais profundamente, até que em meu rosto e em minha pele se formem mapas com cada detalhe da minha existência insignificante. Construirei um universo para os vermes que consumirão meu corpo, assim como hoje eu consumo essa terra sem nenhuma piedade. Será o único bom negócio que farei em toda a vida; a morte. Estarei livre de me gabar.
Pouco antes de morrer, sentirei um imenso alívio porque a transação foi efetuada com sucesso entre mim e a terra; bosta e vermes por testemunha.  Estarei enfim, livre das obrigações de ser um sujeito individual.

Será um milésimo de segundo de extremo prazer, e o paraíso será apenas uma miragem pouco antes que eu me divida, diluído pelo ar rarefeito.


Eu entendo e até admiro homens  que conseguem criar através da disciplina um universo supostamente completo e auto-suficiente. Mas essas pessoas simplesmente funcionam de outro jeito, como um instrumento musical que se ligasse à pilha, enquanto outros ligam somente à tomada.

Pertencer à fonte, depender de algo maior e sempre mais belo. De certo é um diagnóstico que se encaixa em nossa geração, filha de hippies deslumbrados que reergueram-se de seu declínio, e hoje nos sustentam através de trabalho compulsivo.  Filhos de uma juventude tão bela e livre que, só de pensá-la, tenho nojo de mim. Preciso de tomada.

Veja aonde eu cheguei. Me formei, agora tenho um diploma de zero à esquerda. O mundo se apresenta à minha frente cheio de estímulos irritantes. Vejo ao meu lado que todos estão sentados em seus computadores, e que o individualismo é a nova pátria; acima de tudo, deve-se honrar a si próprio com festas, músicas, pulos de pára-quedas e brindes barulhentos, e assim foge-se da realidade(essa que andou perdendo a substância para os de nervos mais frágeis). 

Quanto a mim, agora posso escolher por viajar, trabalhar, namorar…tudo, é claro, dentro das cicatrizes em meu currículo. mas não me presto a sustentar qualquer uma dessas escolhas. Entre uma vida entediante e uma outra completamente agitada, gostaria de escolher o meio. Foram do ócio e da instabilidade que retirei as dádivas da minha vida, e não desse desse suor imundo que inunda os esgotos. 

De certa forma estamos todos fodidos e fartos da idéia de que seremos idosos desprezíveis. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Olhei para um céu metafísico apenas para me certificar de que sua estrela não ardia em parte alguma.

Jantei com um véu, ele falava comigo mais do que eu com ele. Lá fora a noite cinza não me convidava à parte alguma. Fiquei para ouvi-lo dizer do meu desejo e do meu amor e de vermes. Ele não parava de dizer seu nome. Ainda não sei nada sobre você, apenas do que meu desejo é capaz..

Vi uma mulher amarela, estive à beira de um precipício. Você agora me diz que eu deveria ter pulado. 
Se volto a você então é por que quero ser arrebentado. Quero expurgar esse amor nojento dos meus nervos.

Você sempre teve vontade, mas nunca me bateu mesmo eu insistindo. Preciso me certificar de que sou um animal irracional que reaje convulsivamente à sua presença. Não sou poeta, sou científico. Dê cá minha vontade de viver de volta.

Uma mulher-titã de três lindas cabeças diferentes; você, ela e mais outra.
Não, nem você nem ela. São todas, e ao mesmo tempo nenhuma delas. Mudam a cada momento.
Que é o labirinto da cidade para um mulher titã? Nada mais que um tabuleiro de jogos. Sou uma peça desprezível, mas que é bom se ter aos montes. E o sacrifício ocorre sempre no momento correto. Morro e salvo o rei que nunca fui.

domingo, 16 de dezembro de 2012

plantando dúvida

Não que eu não me lembre do conteúdo dos livros que li. Mas raramente consigo me lembrar diretamente quando me perguntam "sobre o que fala esse livro?". Numa situação dessas não consigo acessar minha memória, tanto para livros quanto para filmes(filmes costumam ser mais difíceis).
Esses livros depois de lidos se tornam formas, pensamentos arquivados sob uma espécie de código ou algo assim. Preciso de um estímulo para relembrá-los, como preciso do cheiro para revisitar certas emoções. Uma coisa leva a outra, e logo se consegue reconstruir o formato da lembrança.

O importante é não encalhar na linguagem. Não conseguir transmitir algo essencial da sua personalidade, ficar preso nas malhas da linguagem, isso leva à loucura. E talvez grande parte da loucura social esteja relacionada à isso, tanto que a insanidade foi gradualmente transformada em lugar comum. Se perder dessa forma atualmente é desesperador, visto a liberdade que os publicitários(cínicos por escolha própria) se dão para manipular através da palavra. E enchem cada vez mais os escritórios de psicologia, e assim nós gastamos nosso dinheiro por uma hora e meia de atenção duvidosa, quando nem sequer sabemos verbalizar nossos desejos. Temos que ficar repetindo várias e várias vezes, e o psicólogo detecta os pontos em que o inconsciente se deixa revelar. É legal, mas não deveria ser tão complicado assim, deveria? Porque é que nossa educação nos condiciona a não tomar conhecimento de nós mesmos, quando deveria exercer o papel contrário? E porque é que não podemos nos afirmar de forma única sem sermos tachados? Sem que reafirmem sempre, afundados no lodo de suas cabeças sedentárias: você é diferente.
Por que é que, mesmo numa cidade grande como essa,  a vergonha é generalizada? Tenho a impressão de que estou vivendo num eterno jardim de infância por aqui.

Pessoas sãs conseguem se locomover na linguagem, transferir, sublimar, relativizar. Essa liberdade de movimentos se conquista apenas com a diversidade de meios(arte como meio de expressão), ou mesmo com o conhecimento de outras línguas e culturas, tão complexas quanto a materna. Não é uma questão de se resolver, mas de se diluir na linguagem e através dela. E nem todas as línguas permitem uma expressão fluida, creio que o próprio português, tal como o usamos, careça de formas de expressão.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

melancolia

Nada mais tradicional do que a melancolia. A boa e velha retração da libido, artimanha dos incapazes; o convívio com o objeto amado apenas dentro de si.

Quer destruir a quem você ama? destrua a si mesmo, diz o slogan do melancólico autosuficiente. Quer amá-lo? Se ame(doce melancolia). Um sujeito que abrange dentro de si o objeto que ama, mas nunca conseguiu alcançá-lo realmente. Um verdadeiro heremita na multidão.

Pensem bem antes de dizerem que não são ou nunca foram melancólicos. O mundo é cada vez mais melancólico, basta ver cada pessoa encerrada dentro de si, "entretida" com si própria, perdendo a fé no outro como objeto real, elegendo a si próprio como "outro". Todo mundo se torna "Alternativo" para si próprio. Todo mundo muito bonito e fora de alcance.

melancolia não passa de uma doença com nome bonito.

E quanto mais se elimina a distância entre nós e as imagens, mais distantes estamos do outro, mais dificilmente podemos verificar o que é conviver, mais facilmente podemos declarar estado de luto por todos que ainda vivem.

Se isso está certo, se isso é mais real ou melhor do que procurar no mundo externo falido em que vivemos algum tipo de amor concreto? Não me pergunte, eu já passei por todo o processo da melancolia na adolescência tomando isso por uma "filosofia" pessoal(se bem que era).
Vale ressaltar a total contribuição das outras pessoas em frustrar constantemente nossas expectativas, em ferir-nos exatamente no mesmo lugar muitas e muitas vezes.

Se abandona então o esforço em relação a elas e o mundo interior ganha espaço. E, ah, se você tiver talento com isso, realmente você terá muito a ganhar. Sem se arrastar no asfalto pelas pessoas que insistem em atropelar, irá cultivar um certo sentido dentro de si que ganhará vida(repito, se você levar jeito pra coisa). E talvez um dia tenha que vomitar isso de volta para o mundo na forma que quiser. Seja esperto e pense em algo bem artístico, e de preferência encubra seu narcisismo com milhares de sentidos(o consumismo, o fim do mundo, a crise na grécia).

Eu não sei muito bem onde me encontro, provavelmente em algum lugar entre a falência generalizada e a perfeição.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

baiana

Olhei pela janela, a favela estendida sobre o morro.
Casas de tijolo se confundiam, uma ou outra verde água ou cor de creme como manchas pintadas, pontos de luz sobre uma pele sépia.
Olhar com atenção para as ruas pequenas dessa favela por entre as mangueiras de um verde escuro me dá uma pequena sensação de nostalgia. Penso em outra sociedade quando eu vejo as motos subindo aquelas vielas, pessoas se cruzando com sacolas plásticas, subindo e descendo ruas que à noite se tornam perigosas.
Penso em uma baiana negra carregando sobre a cabeça uma cesta com qualquer coisa dentro, talvez o peso de uma vida inteira, numa outra cidade qualquer onde vive-se por viver. O sol dessa tarde bateria sobre os ombros dela, e eu aqui sonhando dentro do apartamento.
Não que eu queira  ter uma vida difícil ou uma pele bronzeada, mas gostaria de poder caminhar com algo na cabeça numa tarde como essa, apenas como  um pretexto para estar ali e cumprimentar as pessoas, tendo o sol em comum.
Esse tipo de simplicidade que individualismo nenhum compra, que não pode ser conquistado através de planos, cronogramas ou padrões. Esse tipo de coisa sublimada que quando nos damos conta, nós perdemos, e quem perdeu, ganhou(a infância de volta).
E eu estou apenas imaginando essa cena, me certificando que faço parte de uma classe média que só aumenta e engorda e vai escorregar na praça do papa aos domingos.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Mancha de cor

mas olhar-te; minha maior dificuldade desde criança, ver qualquer coisa. Mas aí implicaria ver com o corpo todo, e isso poderia fazer, imagino, mas não dessa maneira.

sua visão me ultrapassaria como se eu fosse apenas um detalhe na perspectiva, quase sempre desfocado na sua máquina de ver, e eu agradeceria, cheio de secreto júbilo, por ser parte do enquadramento.

Nunca se vê na foto se esboçei foi um sorriso ou se disse alguma coisa com os olhos - apenas um borrão, uma mancha de cor.
Eu: um homem sem foco.

Foram poucas as vezes que seus olhos se focaram nos meus. um olhar concentrado negro e fluido.
Você em plena saúde física e emocional e eu perdendo as calças da minha alma - ambos na flor da idade.

Nunca voltei a realmente sofrer daquela maneira, em plena luz do dia, sem tocar em nada ou fazer qualquer barulho..nem mesmo compreender coisa alguma. Em outras palavras, nunca vivi tanto, e em estado tão deplorável.

dor tão visceral a daquele tempo, que hoje tudo quanto diz respeito a você faz todos meus sentidos implorarem por vida. Te querer não é uma opção: é um instinto.

Percorrer-te com os olhos me deixaria satisfeito, agora que sei sublimar o excesso e cortar meus impulsos. E ser um detalhe desfocado, porém radiante de felicidade nas fotografias.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Amor vertebral

Amor platônico não diria, diria sim talvez um amor que sofre de sublimação precoce. O desejo, se existe ou existiu, se morreu, se virou slogan, música, canção, pintura, foto, texto, camisa, suor, não sei.
Sei que grande parte foi sublimado, sustentado por um anzol em cima de nossas cabeças e por isso que existe há tanto tempo e por isso não dá nem vontade de realizá-lo. Como uma coisa pode parecer tão mais bonita dependurada de cima das cabeças, tampando um céu grande e absurdo, tanto que não ousemos nem acreditar em Deus, por favor. Um bilhão de coisas estão se atraindo o tempo todo, instinto é algo muito mais intricado do que a gente pode imaginar. Está ligado a realidade absoluta, essa que a gente pode ver ou imaginar, mas é difícil tocar, e se dá pra tocar, é difícil ver ou imaginar. Um bilhão de coisas passando pelos cerebelos sustentados por uma coluna vertebral forte e definitiva. Não penso em voltar a andar de quatro patas, acho que a dúvida aterradora já me amedronta o suficiente para se tornar alimento.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

por aqui costumamos criar nossas feridas por nossa própria conta.
uma cidade grande, um rio de cumplicidade em meio a um mar de sangue,
meus amigos, minha própria casa.

sei que deveria sair, mas se não se importam os bem aventurados
consigo cuidar das minhas mazelas sem fim nem ponta
por aqui, por minha própria conta.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

dei uma boa arejada, e dói como o diabo. como se eu tivesse tirado a espuma que me tornava gordinho e imbecil e me lembrado do quanto doía ser cru, sentindo na pele as ondas que morrem. E ainda morrem irremediavelmente, deixando o ar úmido e cheio de sal, tanto que faz os olhos arderem, não sei se do sol também.

domingo, 11 de novembro de 2012


Resolvi sentar. Chove ralo lá fora. Soltei minha cadela cega e velha – já que ela insiste tanto –, ela agora está andando pela sala trombando com a cabeça nos móveis sem morrer – já que ela insiste tanto – eu não posso fazer nada. Algumas vezes me pego assim andando em círculos, e talvez se eu fosse cego eu sairia mesmo por aí sendo atropelado, apenas talvez. Ou iria para um bar onde tocasse boa música e se me dissessem pra sair eu diria, tal como Bartleby, “Prefiro não fazer”. Minha vocação para a preguiça é digna, é um Dom maravilhoso de um deus que escreve errado por linhas retas. Prefiro não fazer, ou só fazer o necessário para viver e sobreviver bem. Nada de medalhas, nada de honra ao mérito.

Hoje eu vi um adesivo num carro, imitando aqueles de BH: Amo a mim mesmo – incondicionalmente(incondicionalmente escrito na vertical).
Me lembrei de que tenho excesso de verticalidade. Às vezes é tanto que pendo muito pra frente, pareço uma estátua de Giacometti rasgando o espaço..
Tinha medo, pânico do meu peito se colar às minhas costas até eu não conseguir respirar e me partir. Hoje faço exercícios regularmente, e isso me dá uma sensação diluída de existiência. Crio músculos para distinguir meu sangue do pó de concreto. Me libero um pouco de pensar, e de uma certa substância tóxica maior do que qualquer droga. Pensar é ridículo. Prefiriria não pensar, mas não consigo deixar de pensar, acho que comecei a pensar compulsivamente aos 17 anos, foi quando voltei a gostar da vida.
Antes disso na chamada pré adolescência, eu tinha absoluta consciência do meu estado de coma e me punia pelo fato de não conseguir sentir nada, nada por ninguém, nada por dinheiro, família, presentes, nem música. O curioso é que eu tinha uma banda – talvez tenha sido minha muleta existencial naquele tempo.

Hoje tenho uma coleção de muletas. Amo música mais do que antes. Quero ouvir novas músicas, e depois dizer que são minhas, eu que fiz. Pensamentos idosos, eu sei, pensamentos idosos na minha cabeça. Sinto tesão metafísico por certas pessoas, não que eu seja um garanhão, mas eu me garanti algumas vezes com pessoas maravilhosas cheias de defeitos absurdos, todas elas malucas. Cada vez menos companhia para a loucura. Mesmo os poucos, será que foram cúmplices? Prefiro acreditar que sim, mesmo que seja um tiro no escuro. Prefiro acreditar que te amo
Me lembro da cena do meu avô com seu enfermeiro. Mas isso é só um lembrete pra lembrar de escrever depois.

sábado, 10 de novembro de 2012

Ghostbusters

Quando era criança costumava pensar sobre a possibilidade de eu ser o único humano na Terra, e que todos os outros eram Aliens fantasiados e estavam me testando, me observando o tempo todo. 
Pensava também que quando eu dormia e acordava na manhã seguinte, não tinha se passado menos de um minuto, e que as pessoas que ficaram acordadas na noite passada ainda estavam lá, em um tempo diferente do meu. Um dia perguntei sobre isso para a empregada, ela não entendeu.
Eu sabia das coisas, quando era criança. 

Corri logo depois da chuva com o céu nublado e o ar ainda frio e úmido, os cigarros que fumei ontem e a bebedeira não me atrapalharam dessa vez. Na praça corria também um senhor que parecia japonês e que devia ter 50 com corpo de uns 30, ele me lembrou um escritor maratonista que escreveu um livro inteiro só sobre correr ('Do que eu Falo Quando eu Falo Sobre Corrida' - Haruki Murakami). Fiquei feliz que só nós dois tivéssemos pensado que correr naquele tempo naquela praça num sábado era mesmo uma boa idéia, com o vento e as poças e tudo. Talvez seja uma característica meio japonesa, pensar desse jeito.

Ilusões flutuam sobre meu cerebelo como fantasmas que não capturei, ainda - sim, eu estou vendo Ghostbusters, fiz um pequeno intervalo. Escrever é uma ótima maneira de capturar fantasmas, ou mesmo criar uma espécie de separação entre mim e eles. Logo percebe-se por que escrevo igual psicótico. Não sou muito inteligente nem muito sensível. Escrevo esses resquícios do mundo que deixo de limpar, que introjeto em ilusão. Muitas vezes me esqueço de que posso simplesmente remover certas barreiras que coloco. Na verdade, isso é muito mais importante do que qualquer preocupação estética. É preciso uma concentração dos diabos.
Humanos em geral acham que esses hábitos artísticos são hábitos homossexuais estéticos, mas escute-os conversando, a gente logo vê que não sai nada de importante das bocas deles. Não entendo como eles mantém as cordas vocais saudáveis com aquele fluxo de palavras gordurosas escorregando de suas bocas o tempo todo. Essas pessoas poderiam simplesmente acabar em 2012, e deixarem o mundo como está. 
Imagina acordar um dia e elas não estarem mais lá, nos escritórios, nas faculdades, nas ruas...Talvez eu arrumasse um emprego estável, ou finalmente me animasse a viajar por aí, conhecer os lugares.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Um ajuntamento de sangue e pó de concreto, pessoas que não param de falar o tempo inteiro, você só está com eles porque acariciam sua memória de alguma maneira como brinquedos da infância não esquecidos.
Os verdadeiros amigos estão indo ladeira abaixo, toda a cidade parece estar desmoronando, com céu e tudo. "Não pode desmoronar junto agora, não pode, só mais esse tempinho e saímos daqui" e você divide a sua rotina entre praticar esportes(corrida, tênis, natação, bicicleta, mais que um triatlo), e alimentar sua cabeça mendiga(escrever, fumar, beber, tocar, roer unhas). Estar completamente são não é saída, a mente fica num estado deplorável, morrendo de alguma coisa. Deve estar com a cabeça grávida de qualquer coisa, vai saber.
- Mulher engravida cabeça de homem quando vira idéia. - Já dizia o meu neto.




sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Aline

A praia. finalmente, a praia. Saí de Belo Horizonte - sol, concreto - vim para Itacoatiara - dias nublados, chuvas amenas e espaçadas. Mas nem aqui consigo ficar livre dos mineiros.
Hoje estava andando na praia sem querer chegar a lugar nenhum quando cruzou comigo vindo na direção oposta uma mulher vestida com saia laranja, blusa preta, maquiagem pesada e óculos escuros de camelô. Minha primeira reação foi me sentir atraído - mesmo com a sensação de que aquela pessoa não sabia bem onde estava, pelas suas vestes devia achar que aquela praia vazia era uma espécie de shopping, seilá. Na hora só pude pensar naqueles óculos escuros de camelô e passei reto por ela.
Atravessei a longa praia e andei de volta. Enfim encontrei-a sentada numa pedra à beira mar com um livro. Sentei-me numa outra pedra a uns 10 metros e peguei um livro também, o que não era mesmo má idéia. De soslaio olhava para ela, que enfim pareceu ficar mais a vontade e tirou a camisa preta e opressora.
Passado um tempo um amigo chegou, fumou um toco, brincamos um pouco. Quando ela se levantou e saiu, por um acaso do destino nos levantamos e saímos também, seguindo suas pegadas pela areia.
A mocinha parou para comprar um picolé e eu passei por ela já meio sem jeito, e em questão de segundos esse meu amigo já estava dizendo à ela o quanto a achava bonita. Fiquei com vergonha por ele, mas de alguma forma esse amigo sempre consegue soar gentil, então eles começaram a conversar e ela disse que era de Belo Horizonte. Se chamava Aline. Dei um pulo para trás e puxei conversa "Oh, Você também de Belo Horizonte?"
-Nasci em Belo Horizonte, mas moro em Contagem. Perto do Carrefour.
Perto do Carrefour. Não sei que diabos ela quis dizer, será que existe um Carrefour em Contagem onde os moradores se encontram para botar o papo em dia ou algo assim? Há milhares deles em Belo Horizonte. São motivo de orgulho os nossos Carrefours, onde podemos comer sanduíches de frango a preços acessíveis.
Perguntei a ela o que fazia ali.
- Vim acompanhar meu noivo a um simpósio de Direito na cidade. Ele está lá agora, e eu resolvi ficar por aqui.
Um noivo. Essa podia ser simpática comigo porque ela já tinha um noivo, e guardou a informação para soltar no meio da conversa.
Meu amigo se afastou alguns metros, de modo que continuei a conversa sozinho.
Aline era psicóloga. Ela realmente tinha cara de psicóloga. Na verdade parecia minha psicóloga. Notei algo nas mãos e no pulso, mão e pulso de psicóloga. Gostava de teatro, queria voltar a fazer teatro.
Acho que é tudo que eu consegui extrair dessa pessoa. Ah, tinha boas sombrancelhas.
Eu poderia ter achado a experiência mais interessante se ela não tivesse conservado durante todo aquele tempo os óculos escuros de camelô.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

a criança aleijada e o confessionário

Outro dia eu li não sei de quem, que o futuro da literatura estava na confissão. Não saberia dizer se ele estava certo, mas ao menos pra mim escrever se torna tão mais prazeroso quanto mais confissões eu fizer, mesmo que mascaradas por milhares de sentidos.

Será que é um tipo de superficialidade precisar de se confessar(precisar saber que há alguém ouvindo por trás dos nossos véus)?

- Por que não escrever num diário? - provavelmente perguntaria minha penúltima namorada, afundada em sua cama lendo algum livro clássico, histórias de princesas em um mundo inglês recatado e sofisticado.
- Um ranço muito comum em um país predominantemente católico de terceiro mundo - Diria o acadêmico filho da puta.
...E nenhum dos dois me ouviria quando eu dissesse, "acho uma saída muito fácil colocar dessa maneira". 


Não existe nem nunca existirá ser humano perfeito que sempre tenha vivido em completa sintonia com a sociedade. Absolutamente todos tiveram que reprimir seus desejos e passar pela angústia para se adaptarem. Todos um dia se fuderam. E todos, mais cedo ou mais tarde, acordam pra esse fato e, a partir daí, começam a se entender por gente(não me arrisco a dizer que alguém nunca se dê conta disso. pode até esquecer depois, mas...).

A sociedade católica tradicional por muito tempo se suportou com o confessionário.
A ferocidade da sociedade industrial criou as bases para o surgimento da Psicologia.
E a Psicologia mesma nos diz: muitas vezes precisamos de fantasmas que clamem por nosso desejo para desvendá-lo.
É o que está do outro lado do véu, o que provoca movimento, transferência, enfim, reconhecimento.
Desnecessário dizer que nós só precisamos acreditar na existência desse fantasma para que ele exista.
Mas não é a existência dele que está em jogo. É a vontade.
É preciso reaver o desejo da criança aleijada que não pára de chorar e morrer todo dia.

Não quero dizer que devamos viver como loucos, nos alimentando de ilusões regularmente como um yogue pofissa se alimenta de luz. Eu sou meio louco, mas você não precisa ser, é isso que eu quero dizer. Se você está consciente de todos os seus desejos e os controla ou satisfaz apenas com o que pode tocar ao seu redor, vá em frente camarada, não há ninguém aqui te obrigando a ser obscuro. Mas não vejo muitos da sua espécie andando pelas ruas ultimamente. Acho que ninguém parece ter tido realmente muita sorte.

Hoje temos condições de ter quantos fantasmas quisermos através dos nossos dispositivos. Podemos cobiçar uma pessoa, idolatrar sua imagem, até mesmo enviarmos um texto ridículo(como esse) para ela se quisermos. Nós mesmos podemos atualizar nossa identidade fantasmática com cores, frases, músicas e outros pequenos brinquedinhos que animem a criança aleijada que se carrega.
Não existe essa de "minha infância que foi boa, a sua é uma merda". a infância em si é uma merda, seja com facebook, carrinho de rolimã, ou com programa da Xuxa.


Então eu tenho uma confissão a fazer, e prefiro fazê-la logo: grande parte da minha vida foi uma merda.

Mas talvez a sua angústia tenha sido tanto ou mais cabulosa que a minha. E isso é novidade pra mim.
Talvez a novidade seja aquela palavra que eu não gosto, a compaixão.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Eu não sei se queria escrever um romance, ou um livro sequer, na verdade estou de saco cheio de todos os livros da minha estante. Parecem carecer de tudo. Música, se fossem mais musicais eu iria gostar deles, se as palavras fossem ritmadas e levassem meus olhos para dentro como levam-me certas músicas os ouvidos - isso soa poético mas é verdade. Muitos deles(dos livros) fizeram com que eu me sentisse nas alturas quando eu era mais novo, mas hoje não parecem exercer efeito algum sobre mim.
Não, não quero mais ler os beatniks, estou de saco cheio da biografia do Kerouac e nem cheguei na metade. Às vezes penso que sou eu, eu que fali meus olhos ou perdi a disciplina que tinha na escola, mas não é assim.

Os livros de Hermann Hesse e Haruki Murakami estão fora dessa ok? Conheci Murakami por acaso aos 15 anos, porque gostei da capa de Norwegian Wood então comprei na hora(dessa forma também conheci a banda Queen, alguns anos antes).
Hermann Hesse, eu prefiro não contar sobre a ocasião em que me deram o livro - mas vale dizer que os livros tem uma espécie de magnetismo, que às vezes te chegam na hora certa. Não como pessoas. Pessoas só chegam na hora errada.
Não que os livros tenham perdido esse magnetismo que costumavam ter para mim, mas talvez eu não precise necessariamente deles agora.

Talvez eu precise de algo mais cruel. De uma mulher, diria qualquer um que se acha espertinho o bastante. Bom, não é bem isso. Uma mulher vai te agradar como puder, o que ela nunca vai te oferecer é uma solução. Talvez ofereça um filho, e ainda não é uma solução, é um subterfúgio. Então eu vou dizer ao meu filho, "vá, busque a solução, estude piano, bioquímica e inglês seu filho da puta, não vá perder a aula de acupuntura às seis", enquanto eu estaria num trabalho, sem gostar de livros ou de música, ou de nada. Apenas um neurótico criando outro neurótico no mundo. E eu sussuraria aos ouvidos da mulher gorda ao meu lado, bem debaixo dos lençois, "Parabéns...Parabéns...."

 nesses olhares não se vê um rastro de paixão, nem no meu. Mas a vantagem de ser meio louco e esquisito na vida é que você sempre sabe que o que você representa pras pessoas não é nada, nem a metade do que poderia emergir desse bicho esquisito dentro de você.
Então, existe essa outra pessoa, está em algum lugar na sua cabeça te enchendo o saco para procurar alguma coisa. Você nem é um tipo de intelectual, mas essa pessoa é tão insistente que você realmente começa a pensar o tempo todo em coisas cada vez mais intrigantes, e isso se torna uma espécie de retroalimentação. Eu sei que essa pessoa não sou eu, muito menos minha essência, e nesse ponto não há porque chamar de pessoa. Mas temos que ter um nome, e eu não vou usar Deus. A palavra deus é azul calcinha e não me lembra em nada isso que eu estou tentando explicar, o que me valeria um diploma de Esquizofrênico.

outra coisa só. o fato de não crermos em Deus não quer dizer que devamos agir como ratos, procurando estímulos aleatórios como se tudo fosse uma questão de pulsação no sangue, da aguinha que muda de cor quando temos um pensamento bonzinho e saudável, os filhotes da física quântica e da bondade autosustentável, DEUS, como isso pode ser irritante, e milhares, milhares, milhares de pessoas pensam assim. Eu prefiro ser um católico bunda mole se for o caso.
Quer dizer, existe um mundo além desse universozinho microscópico, e ele continua intrigante.

sábado, 20 de outubro de 2012

essa vida de bacharel

Ultimamente é isso que eu digo, essa vida de solteiro não é tão ruim quando você olha por esse lado, você está completamente bêbado, mas não envelheceu nesses últimos meses. Seus olhos brilham e sua baba cintila junto à sua pele oleosa, você parece transbordar de uma espécie de inspiração mística que na verdade é falta de sexo - esses dias você não tem dado muita sorte, não que tenha tentado, mas ao menos cogitou tentar ao invés de ligar para sua ex namorada e ser atendido de novo pelo recente namorado dela: um ator mirim de 1 metro e sessenta, com pinta de galã que incentiva sua ex a cortar os pulsos no banheiro. As amigas dela te deram as boas novas: ele mora sozinho em uma casa abandonada cheia de vidros quebrados, ela briga com os pais em casa para poder dormir lá, e paga as drogas pra ele. É como um filme da sessão da tarde, e você só aparece no começo como mero coadjuvante.
Isso foi acontecer justo com você, que adoraria fazer teatro mas nunca fez porque odeia espertinhos que fazem teatro e vivem estuprando o ego das pessoas o tempo todo.
Você foi substituído por um perfeito fetiche humano. Você foi devidamente comparado, empacotado e descartado como um McNugget.
Mas está tudo bem, porque da outra vez que você chingou esse ator mirim ele nem sequer conseguiu responder pela própria mãe, mas olhe só, você ainda é uma espécie de homem das cavernas sem um bom motivo pra viver, e os méritos são deles, do ator mirim e de sua ex infantilóide, e as outras parecem ir muito bem nessa empreitada, obrigado. Na verdade a última coisa que você quer é voltar a namorar. Só pensa em poder encostar seu nariz no dela mais uma vez, tirar uma foto que não tirou, dar mais uma transada, e só.

Cocaína, maconha, cerveja, futuro, amor, cigarros, cursos de espanhol, graduação, emprego, uma volta no quarteirão, todas essas camadas sem sentido da vida se interpenetram. Eles te aplaudiram no dia do aniversário. Parabéns, eles disseram, parabéns.
Você ficou ali se perguntando o que quer dizer essa coisa que ultimamente te espreita do fundo do seu olho quando você se olha no espelho - essa coisa recém chegada que parece estar ficando cada dia maior e mais furiosa e mais silenciosa, e é toda a sua neurose adulta te dizendo bom dia como vai?



segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Querido Mundo Acabado.

Será que procuro algo em que me esqueço
Como se buscasse o próprio esquecimento?

Não me encontro em lugar nenhum
não se parecem mais lugares

Mas mesmo que encontrasse
Não seria grande coisa,
porque na hora seguinte
já teria que me parir de novo

Pois que para me saber
Tenho que me parir o tempo todo,
algo que já nasce morto.
Ainda assim carrego essa morte
que nunca morre.

O mais certo é que
não conseguiria me justificar
mesmo que tentasse
estou condenado à Terra

(No sentido não cliché da Terra
a terra que me consome
Gordinho.)

Então, essas palavras não importam, elas não se importam nem com elas mesmas.
Amanhã terei quatrocentos ataques cardíacos de novo
dozentas dores de estômago
E vou reclamar de um mundo acabado, iluminado por uma luz idiota.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sara(2011)

Minha cadela está cega já há algum tempo. Glaucoma, diz o veterinário. E surda, pelo que pude comprovar. Hoje estalei os dedos ela olhou para a esquerda. Eu estava no sofá à direita. Curioso isso, dela virar a cabeça pra "ver" alguma coisa. Ela não me encontra a não ser que eu vá até ela e lhe roçe o pêlo, o que a faz estremecer levemente.
Não me sinto triste por ela. Ela está velha, não sente dores ao que parece e conservou algum vigor físico através do pilates. E a velhice parece ter lhe trazido alguma sabedoria, de modo que ela não fica mais chorando pelos cantos. Mesmo cega e surda ela insiste em andar, procurar alguma coisa(vide "A Filosofia de vida da minha cadela"). Coloco-a de volta em sua cama, mas ela insiste em se levantar para ir dar de cara com uma cadeira, uma geladeira, um poste, enfim.
Saí para passear com ela na coleira. Na maior parte do tempo eu a guiava mas muitas vezes ela se detinha no caminho, gemendo e puxando, me obrigando a esperar que ela farejasse alguma coisa, na maior parte do tempo merda alheia. O que eu posso fazer, privar ela do direito de cheirar, o único sentido em que ela ainda pode confiar? Devido a isso o passeio foi bem mais longo do que eu planejara.
Alguns cachorros cheiravam seu rabo de quando em vez sem despertar nela o menor interesse. Um outro cachorro pequeno e cilindrico latia para ela veementemente, e soltou um gemido interrogativo ao notar que havia algo errado com ela. Ela nunca se interessou por nenhum cão em especial, mas costumava estremecer quando latiam para ela. Uma vez levamos um beagle gordo(seu dono o alimentava sempre com frango) lá pra casa para cruzar com Sara que também é meio beagle. O cão passou uma semana lá e não quis cruzar com ela. Tinha uma cara sempre interrogativa, provavelmente se perguntando em qual esquina da vida encontraria o próximo frango, então pensamos que seu problema era obesidade mórbida.
Mas Sara está bem. Seu rabo já não sobe e suas pernas já não tremem quando está em público. Até mesmo um gato, que ficou com medo quando chegamos perto, passou a seguir-nos, nos perguntando porque não estávamos interessados em sua carne de gato. dei de ombros e fui embora.

no final do passeio, a cadela não queria mais andar. tive que carregá-la dois quarteiroes até em casa. Seu focinho úmido roçava em minhas bochechas, tinha os olhos fechados, acho que ela se sentia muito bem.

domingo, 7 de outubro de 2012

do ponto de vista
do atropelado,
nunca enlouqueço
nunca me abandono
sou um ponto
abandonado.

Luna e Adele(2010)


Estávamos todos sentados à mesa para o jantar na casa de praia da vovó. Conosco estava Luna, que morava na casa vizinha. Não era surpresa para ninguém que Luna, uma adolescente branca e de feições delicadas, fosse extremamente tímida. Mas nesse dia, curiosamente ela falava com naturalidade e polidamente. Mal se notava a ausência de sua irmã mais velha, Adele, que era alta, magra, loira como Luna, tinha maxilares grandes(desdendência alemã), e um jeito afetivo e brincalhão do qual eu gostava muito quando era novo. Eu me lembro de deitar no colo dela e ouvir os barulhos estranhos que seu estômago fazia, e nós dois ríamos porque éramos os únicos que sabíamos. Os outros estavam interessados em outras coisas. Minha tia que olhava da porta achava que eu me sentia atraído sexualmente por ela.
Bom, as duas irmãs nos visitavam sempre juntas, até esse dia.

Enquanto a caçula Luna falava à mesa de jantar, por um momento duvidei da segurança que lhe transparecia; falava controladamente, como se não precisasse mais de ter Adele ao seu lado para se sentir completa. Nem sequer imitava os trejeitos da irmã ou mencionava seu nome. Apenas continuava a conversa de maneira perfeitamente controlada. Isso me irritou, então todas as pessoas da mesa passaram a me irritar por estarem de acordo com aquela cena. Como se a atuação daquele personagem isolado fizesse mais sentido do que as duas juntas, Aline a extrovertida e Luna a meiga, como sempre havia sido.

Foi quando notei que Adele estava parada no quintal do lado de fora e me olhava pela porta aberta. Seu rosto me pareceu estranho; era como se ela tivesse perdido algum traço ínfimo, mas definitivo de sua personalidade. Ela ficou ali, sem colocar um pé dentro da sala.
Alguém me disse que Adele tinha o rosto deformado. Ela estava usando uma máscara médica que consertava seu rosto nos detalhes gerais, deixando transparecer algumas pequenas falhas. Ao saber disso, fui pedir a ela que me emprestasse a máscara. Meu próprio rosto estava deformado, não se via o fundo das minhas olheiras...
Saí com a máscara aquela noite. Meu nariz estava um pouco mais avantajado, mas o resto ficou normal. Tive uma noite normal, muito satisfatória e eu me sentia péssimo.
No dia seguinte, todos foram para a praia como de costume, mas eu fiquei em casa pela manhã. Fiquei procurando a máscara de Adele, que não conseguia achar em lugar nenhum.
Não me lembro do que aconteceu depois.

sábado, 6 de outubro de 2012

Annette

Ela está na casa dos 30, tem cara de 20 e mora com os pais.
Eu nunca recitaria essas coisas que eu escrevo numa mesa de bar cheia de semi conhecidos.
Annette sim.
Algumas vezes tenho a impressão de que tudo que em mim é recôndito nela se revela de forma atraente e espalhafatosa.
Outras vezes me parece que ela carrega por dentro algo que eu não suportaria conter.

Ela pinta abstrações realísticas. Eu pinto realidades abstratas.

Annette não consegue deixar de falar o que pensa. Sempre se sente no direito de pensar alto comigo, assim como faz minha mãe. Mesmo quando está falando em voz alta sobre seus devaneios nunca parece sair de si própria e do seu mundo ruidoso e frenético.
Para ser amigo dela devo ouvir seus monólogos intermináveis e tentar calmamente encaixar as peças que ela me dá. Talvez eu conseguisse lembrá-la de si própria. Tenho que me lembrar de nunca em hipótese alguma oferecer cocaína a ela.

Outro dia nós dois nos sentamos numa mesa de bar onde estavam mais alguns amigos meus. Ela se tornou rapidamente o centro das atençoes e, sem fazer cerimônia, começou a disparar seus pensamentos com voz estridente. Eu permaneci durante todo o tempo calado, por que não estava com paciência de ouvir todo aquele papo de novo.
Por um momento ela olhou para mim com olhos furiosos; criticava minha calma. Disse que não entendia minha geração, que na minha idade ela não era assim tão cansada. Eu não pude respondê-la. Penso que muitas pessoas, não importa a geração delas, estão cansadas. Basta ver as crianças com os rostos delas estranhos e meio preocupados, o que é que você vai dizer pra elas? Que na época delas você não era assim tão cansada? Algumas peças caíram antes mesmo de nascerem, e hoje terão que realizar um esforço muito maior para ter prazer em coisas simples como dormir, caminhar ou transar. E essa permissividade não parece ser um trunfo. Às vezes tenho a impressão de que todos prefeririam simplesmente parar de desejar, e que o próprio desejo deixasse de ser uma demanda constante - temos que desejar o mundo, temos que ter uma relação erótica com a natureza e com nossos semelhantes - às vezes seria melhor não pensar em nada. Talvez as pessoas mais interessantes pra mim não estejam nem aí para nada. Ultimamente me tem sido extremamente difícil saber por onde andam.
Annette se gabava do seu passado, mas estava ficando louca junto com todas aquelas crianças.

Um tempo depois, ela discorria sobre o assunto "Umbanda", e os homens em volta ouviam sem protestar. Disse que o Exu baixou só pra ela quando foi ao terreiro. Exu deve ter atado um fogaréu dentro dela, algo que a aprisiona e a leva de volta pra uma espécie de limbo calorento.
Ela disse que um dia beijou uma prostituta num karaokë no centro da cidade. Disse que depois todos queriam entrar no meio e beijá-la também, então seu amigo teve que tirar os homens dali. Contou tudo isso rindo, com muito entusiasmo. Não pensei em duvidar dela.



Lívia

5 minutos após eu pagar para entrar naquele quintal, uma garota branquela de óculos, acompanhada de uma amiga tímida e sardenta me disse que havia alguém interessado em me conhecer. Perguntei quem era a pessoa, então me disseram para olhar para a frente. Automaticamente vi uma menina meio gorda desfilando perto da piscina. Veio em minha direção simulando desdém e suas amigas a apresentaram para mim, aos risinhos e com pouco tato.
Logo soube que ela se chamava Lívia, fazia museologia e administração, era de São João Del Rei e estava ali com o pessoal do couchsurfing - seja lá que diabos isso signifique. Seus olhos pareciam cansados - eu não vi neles nenhum desejo, só duas bolas cansadas, achei que ela devia ir pra cama sozinha e dormir bem essa noite. Provavelmente em seu sono eu a fiz lembrar vagamente de um ator de novela. Suas amigas interrompiam a conversa periodicamente, se reunindo aos risinhos. Ela então me chamou para ir à casa dela do outro lado da cidade junto com as garotas - tinha cerveja e tudo mais. Eu olhei para o lado - estava interessado na magra, com uma voz esquisita parecendo de surda, e sardas por todo o rosto. Lembrava minha ex-namorada. Pensando nisso, eu disse que gostaria de ir com elas, mas ia chamar um amigo meu para ir comigo.
Saí a procura do meu comparsa, e com dificuldade achei-o sentado na última mesa do recinto, conversando com uma amiga que estava enlouquecendo a olhos vistos. Quando voltei para as garotas, elas tinham ido embora e a menina das sardas também. Senti um certo alívio e comecei a pensar na minha cama, na noite que eu tinha pra dormir, no silêncio e no fato de que eu não queria conhecer mais ninguém.