sábado, 6 de outubro de 2012

Annette

Ela está na casa dos 30, tem cara de 20 e mora com os pais.
Eu nunca recitaria essas coisas que eu escrevo numa mesa de bar cheia de semi conhecidos.
Annette sim.
Algumas vezes tenho a impressão de que tudo que em mim é recôndito nela se revela de forma atraente e espalhafatosa.
Outras vezes me parece que ela carrega por dentro algo que eu não suportaria conter.

Ela pinta abstrações realísticas. Eu pinto realidades abstratas.

Annette não consegue deixar de falar o que pensa. Sempre se sente no direito de pensar alto comigo, assim como faz minha mãe. Mesmo quando está falando em voz alta sobre seus devaneios nunca parece sair de si própria e do seu mundo ruidoso e frenético.
Para ser amigo dela devo ouvir seus monólogos intermináveis e tentar calmamente encaixar as peças que ela me dá. Talvez eu conseguisse lembrá-la de si própria. Tenho que me lembrar de nunca em hipótese alguma oferecer cocaína a ela.

Outro dia nós dois nos sentamos numa mesa de bar onde estavam mais alguns amigos meus. Ela se tornou rapidamente o centro das atençoes e, sem fazer cerimônia, começou a disparar seus pensamentos com voz estridente. Eu permaneci durante todo o tempo calado, por que não estava com paciência de ouvir todo aquele papo de novo.
Por um momento ela olhou para mim com olhos furiosos; criticava minha calma. Disse que não entendia minha geração, que na minha idade ela não era assim tão cansada. Eu não pude respondê-la. Penso que muitas pessoas, não importa a geração delas, estão cansadas. Basta ver as crianças com os rostos delas estranhos e meio preocupados, o que é que você vai dizer pra elas? Que na época delas você não era assim tão cansada? Algumas peças caíram antes mesmo de nascerem, e hoje terão que realizar um esforço muito maior para ter prazer em coisas simples como dormir, caminhar ou transar. E essa permissividade não parece ser um trunfo. Às vezes tenho a impressão de que todos prefeririam simplesmente parar de desejar, e que o próprio desejo deixasse de ser uma demanda constante - temos que desejar o mundo, temos que ter uma relação erótica com a natureza e com nossos semelhantes - às vezes seria melhor não pensar em nada. Talvez as pessoas mais interessantes pra mim não estejam nem aí para nada. Ultimamente me tem sido extremamente difícil saber por onde andam.
Annette se gabava do seu passado, mas estava ficando louca junto com todas aquelas crianças.

Um tempo depois, ela discorria sobre o assunto "Umbanda", e os homens em volta ouviam sem protestar. Disse que o Exu baixou só pra ela quando foi ao terreiro. Exu deve ter atado um fogaréu dentro dela, algo que a aprisiona e a leva de volta pra uma espécie de limbo calorento.
Ela disse que um dia beijou uma prostituta num karaokë no centro da cidade. Disse que depois todos queriam entrar no meio e beijá-la também, então seu amigo teve que tirar os homens dali. Contou tudo isso rindo, com muito entusiasmo. Não pensei em duvidar dela.