terça-feira, 8 de outubro de 2013

Amadeu Esperança

- Garçom!
- Pois não?
- Gostaria de uma porção de coisas.
- Bem ou mal passadas?
- Ao ponto, naquele ponto definitivo a partir do qual não há retorno. Você sabe do que estou falando. 
- É claro senhor. Algo mais?
- Uma gim tônica.
- Sim senhor. Um momento.

Olhou para o relógio - nossa, já eram 10 da manhã! - e se deu conta de que sua porção de coisas talvez não chegasse nunca.
A sensação do seu sonho ainda persistiu por, digamos, menos de um minuto. As imagens logo se dissiparam nas paredes sóbrias do quarto.
O que persistia era a sensação de espera pelo seu pedido. Porém, agora não havia garçom nenhum - era cliente do tempo, que lhe servia sempre o que bem entendesse quando bem entendesse.
O dia branco lhe cegava pela janela.
O barulho das construções lá fora demandava a sua presença ao espetáculo de cada dia.
Olhou pela janela, as pessoas se movimentavam freneticamente. Numa segunda feira, todos certamente estavam cheios de compromissos inadiáveis, fossem fictícios ou não.
"Quem dera fosse sempre madrugada." Com 55 anos nas costas, Amadeu não se acostumara à vida.

A primeira coisa que lia no jornal era sempre o horóscopo - o seu signo e o da sua amada. Adorava ler coisas como "atenção, hoje o clima pode esquentar com seu amor", e então partia para o signo de Sagitário, e se a coisa batia, isso lhe agradava, lhe aquecia por dentro. Depois lia as charges, e já sem muito interesse, passava os olhos pelo resto do jornal.
Leu uma reportagem no campo de tecnologia sobre um gênio prematuro de 14 anos que havia desenvolvido um reator nuclear. Havia um ano que Amadeu tentava em vão consertar o abajur do seu criado mudo.
- Há coisas que não se consertam - repetia a si mesmo, e voltava à sua leitura, com a luz do teto acesa.