sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Dayane


Eu costumo escutar pela TV, em conversas pseudo profundas(até mesmo em escritórios de Psicologia), uma pergunta recorrente: “Qual a sua lembrança mais antiga?”, às vezes completando com “quantos anos você tinha quando isso ocorreu?”
Pessoalmente, eu considero essa uma pergunta absurda e impossível de ser respondida. Primeiro, como discernir, entre os lapsos de memória da primeira infância, qual é o mais antigo deles? E como diabos você vai se lembrar de quantos anos você tinha, se provavavelmente você não sabia contar nem escrever o próprio nome na época?
Não sei qual é minha lembrança mais antiga, e pouco me interessa saber esse tipo de coisa. É coisa de gente que tem TOC na subjetividade(não que eu também não sofra desse mal).

Eu me lembro da minha primeira melhor amiga, Dayane.

O terraço contornava a casa antiga e malcuidada como uma casa de caboclo, mal se notava que era a casa do dono da fazenda; Doutor Rubens, meu avô. Digamos que ele ligava mais para a longa extensão do terreno e para os seus cavalos esbeltos do que para Decoração de Interiores.
A fazenda possuía muitos hectares de pasto a céu aberto, e por toda sua extensão corria o Rio Verde.

Tanto eu como Dayane - com seus cabelos crespos loiros e desgrenhados como pentelhos e delicados olhos puxadinhos no canto – éramos crianças ingênuas de uma mesma espécie, praticamente indiscerníveis com nossa sexualidade adormecida. Dois futuros demônios.
Dayane era filha de Nelsir, o caboclo que administrava os serviços da fazenda. Nelsir era um homem magro e extremamente forte com mãos calejadíssimas, dono de um rosto fino e moreno. Sempre com um chapeuzinho de couro marrom, tinha um bigodinho e olhos puxados como aquele personagem “mau” daquele filme de faroeste, “O Bom o Mau e o Feio”.  Nelsir(eu chamava-o de Delsir) era, porém, uma das pessoas mais fortes e inteligentes que eu jamais conheci. Junto com Marinete, a cozinheira, tiveram outros dois filhos insuportáveis depois de Dayane chamados Daniela e Matheus. Nunca conheci um Matheus que fosse bom da cabeça.

(saí de casa para entregar uma coisa para meu primo, fumei um cigarro, e acabei dando uma longa volta pelo bairro. Fiz um trajeto que ainda não havia feito, passando pelas ruas que me pareciam mais interessantes. Acabou de chover, então o clima fica agradável. Fui seguindo as pistas – ruas molhadas cobertas por árvores verde escuras, pequenas praças – do que a cidade um dia foi, ou do que poderia ser. Seguindo essa linha pude chegar à avenida principal cheia de carros e gente trabalhando. Pude ver que, se atravessasse a avenida, poderia continuar seguindo essas reminiscências indefinidamente, mas pensei um pouco e dei a volta. Já tentou caminhar por uma avenida principal praticamente de pijamas? Não me pareceu uma boa sensação, por isso voltei. Mas me impressiono com minha própria imbecilidade por não fazer regularmente esse tipo de caminhada)


Comecei esse texto querendo escrever sobre a tal lembrança de Davi e Dayane brincando. Vamos lá:

O chão do terraço era de terra batida e tinha formação irregular(saliências, reentrâncias no solo duro e poeirento), com uma grama fininha crescendo espaçadamente em alguns pontos, que de vez em quando espetava o pé.
O terraço circundava a casa, depois tinha o curral, e depois o pasto a perder de vista circundava tudo mais.
Eu e Dayane estávamos ali brincando, então pegamos uns galhos finos como espadas japonesas e começamos a bater nos troncos grossos e fortudos das árvores, que tinham mais que o triplo da nossa grossura. As árvores eram monstros. Me lembro da voz de Dayane berrando gulturalmente “O mooonstro! Cuidado! O monstro, vai, bate!”
E com nossos galhos nós açoitávamos aquelas poderosas árvores. Saía uma casca delas, ficando inúmeras marcas dos galhos como rabiscos, revelando uma subcamada verde clara que pensei ser a cor do sangue dos monstros.
O resultado do açoite era essa imagem que grudou na minha cabeça, como arte abstrata, dos troncos grossos com cortes em verde claro. 
E nós batíamos repetidamente, veementemente naqueles troncos firmes.
Em dado momento, ficávamos completamente fora de controle, possessos como duas bestas travando lutas intermináveis com árvores impassíveis. Apesar de continuarem em pé fazendo sombra no terraço , nós sempre saíamos vitoriosos das batalhas.

Tardes empoeiradas de sol.

Depois de um tempo, no espaço de um ano entre um verão e outro, a coisa mudou de figura. Dayane estava sentada na sala vendo novela com uma amiga, e nos cumprimentamos com uma timidez atroz. Não faço a mínima ideia se ela sentiu-se estranha como eu, mas eu me senti desmoronar. A nossa antiga amizade parecia agora impossível, a cumplicidade dando lugar a um silêncio gelado e uma bola na garganta. Sei que, a partir daí, ela seguiu crescendo cada vez mais envolta em uma aura cada vez mais feminina, e eu tropeçando em  hesitações crescentes, desenvolvendo uma curvatura duvidosa na nuca.
Eu achava que ela havia se tornado insuportável. Pensava que, se pudesse, bateria nela com os galhos e que talvez seu sangue fosse verde como o das árvores.
Na minha Belo Horizonte apertada, com idade por volta de 10 anos, lembro que olhei para uma bola de cristal e vi Dayane tirando o sutiã, mesmo que peito ela não tivesse. Minha crescente sexualidade gerava em mim melancolia mesclada a crenças paranormais.


Vim a saber, não me lembro por quem, que recentemente ela ingressou na faculdade de Artes Plásticas assim como eu.
Não que eu goste de artistas.